A moral laica é melhor que a moral religiosa?

LuisaoCS

A moral laica é melhor que a moral religiosa?

Com frequência ouvimos pessoas com pouca profundidade de pensamento asseverando que sem religião, sem códigos morais inculcados pelo ultraterreno, o ser humano cairia na depravação, no crime e no "tudo é possível". Os códigos morais religiosos, pois, advogam por alguns princípios indiscutíveis de bondade, por alguns valores que devem se propagar inclusive aplicando a força punitiva.

Deixando de lado inclusive a ideia de que os valores são sempre discutíveis, o irônico é que existem provas bastante sólidas que indicam que o ser humano tem um padrão de moralidade com independência de suas crenças religiosas.

A tudo isto devemos juntar que os códigos morais religiosos não só contêm sentenças profundamente imorais à luz da moralidade contemporânea senão que sua imposição não se baseava tanto na argumentação racional, mas sim em aplicar dor, tortura e sofrimento infinito em quem descumprisse seus mandatos indiscutíveis.


Este divórcio entre a sociedade laica e a religiosa sobre como entendiam a compaixão ao próximo -ainda que o próximo não cumpra as leis morais ou inclusive pertença a outro credo religioso-, começou a se tornar patente no final do século XVIII.

Naquela época, o diplomata inglês William Eden já abominava os castigos crueis dos criminosos. Mas talvez um dos personagens mais influentes na época foi o economista e cientista social milanês Cesare Beccaria, graças a seu livro de 1764 "Dos delitos e das penas". Um livro que serviu de fonte para Voltaire, Diderot, Thomas Jefferson e John Adams.

A tese central do livro se baseava em que a justiça deveria outorgar o máximo de felicidade ao maior número de pessoas, e que o castigo só era legítimo se fosse usado para dissuadir as pessoas de causar mais dano às outras pessoas do que a elas mesmas.

Não se discute aqui se a visão jurídica e moral de Beccaria era cientificamente plausível ou se limitava às evidências, senão que resultava ironicamente mais compassiva, empática e profunda que os códigos morais articulados até o momento, incluídos os de procedência religiosa.

Tanto é que o livro de Beccaria foi incluído no Index Librorum Prohibitorum ("Índice de Livros Proibidos") e criticado pelo erudito jurídico e religioso Pierre-François Muyart de Vouglans, tal e qual explica Steven Pinker em seu livro "The Better Angels of Our Nature":

"Muyart debochava da sensibilidade lacrimogênea de Beccaria, acusava-o de solapar de forma imprudente um sistema que tinha resistido a prova do tempo, e defendia que os castigos duros eram necessários para combater a depravação inata do homem, iniciada com o pecado original. No entanto, as ideias de Beccaria saíram vitoriosas, e no espaço de poucas décadas aboliu-se a tortura punitiva em todos os países ocidentais."

Em suma, aconteceu um salto moral qualitativo: já não se considerava o infrator da moral como um ímpio senão como uma pessoa normal que tinha cometido um deslize ou que tinha sido levado a cometê-lo. E o mais importante: esta mudança moral e intelectual laica deixou de avaliar moralmente as almas para avaliar as vidas terrenais:

"A doutrina do caráter sagrado da alma soa vagamente a elevação do espírito, mas em realidade é algo muito maligno. Reduz a vida na Terra a apenas uma fase temporária pela qual as pessoas passam, uma fração infinitesimal de sua existência. A morte converte-se em um mero ritual de iniciação, como a puberdade ou a crise dos 40. À gradual substituição de vidas por almas como um locus de valor moral que ajudou a ascensão do ceticismo e da razão. Ninguém pode negar a diferença entre a vida e a morte ou a existência do sofrimento, mas para ter crenças sobre o que acontece em uma alma imortal depois de separar do corpo é necessário doutrinamento."

Os dados procedentes da biologia evolutiva, neurociência e genética, ademais, propõem ao ser humano como um ser social que, em condições de escassa agitação e recursos suficientes, resulta essencialmente moral e justo -e inclusive altruísta, ou egoísta cooperativista, como queira denominar-. Os valores morais são, pois, universais, e não importa se existe religião ou não no meio, senão onde exista um contexto social onde a promovam de uma forma fundamentalmente não coativa.

De fato, se os valores morais progrediram é precisamente porque a religião vem perdendo progressivamente prerrogativas à hora de inculcar seus códigos morais -bem como seu modo de fazê-lo-. À medida em que a religião vai perdendo influência, as sociedades se tornam mais morais -no sentido de que discutem melhor seus códigos morais-, tornando os mais adaptáveis à realidade social de forma que sejam manifestados com menos pressão coativa.

Sobre este tema Patricia Smith Churchland aprofunda em seu livro "Braintrust: What Neuroscience Tells Us about Morality", que inicia narrando um episódio pessoal a respeito de como aprendeu no colégio o que era um julgamento divino:

"A ideia básica era simples: graças à intervenção de deus, a inocência se revelaria por si própria, já que o ladrão culpado afundaria no lago, ou o adúltero inocente não queimaria no poste. Para as bruxas, era todo o contrário e o suplício era bem menos 'benévolo': se a mulher acusada de bruxaria morria afogada obtinha a presunção de inocência; se acaso flutuasse, então era considerada culpada, e por isso era arrastada até uma fogueira onde era queimada.

Como dispúnhamos de tempo, minha amiga e eu bolamos um plano: ela me acusaria falsamente de ter roubado o seu porta moedas e depois colocaria minha mão sobre o forno para ver se queimava. Ambas esperávamos que me queimasse, e assim aconteceu. Portanto, se o resultado do experimento era tão eloquente, como era possível que tantas pessoas confiassem no julgamento de deus como sistema para administrar justiça?"

Em outras palavras: buscar o bem-estar de uma sociedade não pode ser baseado em uma lista tosca irrevogável de deveres e proibições, senão em uma mistura de sabedoria, boa vontade, capacidade de negociação, conhecimento histórico e novas descobertas científicas. Como a própria Patricia afirma mais adiante em "Braintrust":

"Sem dúvida, levando em conta os diferentes contextos e as diversas culturas, o modo particular em que se articulam ditos valores adotará diferentes formas e matizes, inclusive nos casos em que compartilhem as mesmas necessidades sociais subjacentes. Segundo esta hipótese, os valores são mais fundamentais que as normas. As diversas leis que regem a vida social, reforçadas por um sistema de recompensa e castigo, podem com o tempo serem articuladas e inclusive modificadas depois de uma longa deliberação, ou podem seguir sendo um conhecimento implícito sobre o que 'nos parece correto'."

A primeira vez em que foi instaurado, de forma global e influente, um progresso cognitivo o suficientemente estável para adquirir o conhecimento mais objetivo sobre a natureza humana ocorreu aproximadamente na época da revolução científica, e ainda está em marcha. Dita revolução não só introduziu melhorias no âmbito do conhecimento científico, senão também no da tecnologia, nas instituições políticas, nos valores morais, na arte e em todos os aspectos do bem-estar humano. Tal e qual explica David Deutsch, professor no Departamento de Física Atômica do Centro de Computação Quântica no Clarendon Laboratory da Universidade de Oxford, em seu livro "The Beginning of Infinity", uma espécie da segunda parte de seu influente "A Essência da Realidade:

"Há efetivamente uma diferença objetiva entre uma explicação falsa e uma explicação verdadeira, entre o fracasso crônico à hora de resolver o problema e a solução do mesmo, e também entre o bem e o mal, o feio e o belo, o sofrimento e o fato de poder aliviar a dor (ou seja, entre o estancamento e o progresso no sentido mais amplo da expressão). Neste livro sustento que todo progresso, tanto teórico quanto prático, é o resultado de uma atividade humana simples: a busca do que eu chamo boas explicações. Ainda que esta busca seja especificamente humana, sua efetividade é também um fato fundamental a respeito da realidade ao nível mais impessoal e cósmico, quando se ajusta às leis universais da natureza, que são, efetivamente nesse caso, boas explicações."

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